De Povos Indígenas no Brasil
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Astronomia Tukano

por Melissa Oliveira, antropóloga, integrante do programa Rio Negro/ISA

Constelacoes tukano. Crédito: AEITY/ACIMET. Editoração gráfica: Renata Alves de Souza
Constelacoes tukano. Crédito: AEITY/ACIMET. Editoração gráfica: Renata Alves de Souza


Desde 2005 um amplo processo de pesquisa tem sido realizado no âmbito de projetos de educação e manejo ambiental protagonizados por indígenas do médio rio Tiquié, organizados na Associação Escola Indígena Tukano Yupuri (AEITY) e na Associação das Comunidades Indígenas do Médio Tiquié (ACIMET), em parceria com profissionais do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental. Este artigo é fruto desse processo, mais especificamente da experiência de pesquisa sobre astronomia, realizada em parceria com o físico Walmir Thomazi Cardoso da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e SBEA (Sociedade Brasileira para o Ensino de Astronomia). Nesta buscou-se identificar o ciclo de constelações tukano e desana, registrar os mitos de origem destas constelações e observar e descrever os fenômenos ecológicos, econômicos e rituais associados a esse ciclo. A constante interlocução com o conhecedor 'Uremiri José Azevedo, tukano, e seu filho Seribhi Dario Alves Azevedo, da comunidade Bote Pur'ĩ Bua, no médio Tiquié, foi fundamental para o desenvolvimento deste texto.

Através do universo: as constelações na cosmologia dos grupos Tukano do rio Tiquié, alto rio Negro

Os povos indígenas, como outros povos do mundo, possuem conhecimentos específicos em relação ao cosmos - sua origem e configuração - e dão significados próprios aos fenômenos que a ciência ocidental denomina astronômicos.

Os grupos Tukano Orientais1 do alto rio Negro são exímios observadores do céu e não raro procuram mostrar aos que entre eles se encontram as constelações, a lua, o sol, Vênus, a Via Láctea, apontando-os, nomeando-os em suas línguas e contando suas histórias. Talvez seja por isso que as constelações têm sido há muito tempo foco de interesse e de descrição de estudiosos que escreveram sobre esta região. Há registros desse tema em textos produzidos por viajantes, missionários, antropólogos e mais recentemente nas publicações realizadas pelos próprios conhecedores indígenas.

Ñohkoa mahsã - Classificações tukano e desana das constelações

Os Tukano possuem um modo muito próprio de classificar as constelações, que são seres ou gentes, "gente-estrela" (ñohkoa mahsã), que vivem na "camada do céu" (umuse pati). As constelações são consideradas objetos ou seres da época da "Gente do aparecimento" (Bahuari mahsã), a primeira humanidade que surgiu na "maloca do Céu" (Umuse Wikhã) e que realizou imersões na terra para propiciar as condições de existência da humanidade atual2.

Em certos episódios da mitologia, os seres ou objetos, que hoje formam as constelações, foram lançados ao céu e se transformaram em "gente-estrela" (ñohkoa mahsã). Na fala de Kumarõ Guilherme Azevedo (Tukano, sib3 Hausirõ porã) os ñohkoa mahsã são brilhosos e têm objetos de ouro (siõpurĩ) como brincos e os bancos. Segundo Uremiri José Azevedo (Tukano, sib Ñahuri porã) são também seres perigosos e venenosos, por isso não encostam uns nos outros e guardam certa distância entre si no espaço.

Categorizadas como gentes (mahsã), as constelações estão inseridas num sistema de compreensão, classificação e ordenação do mundo no qual uma noção de parentesco marcada pela segmentação e a hierarquia é idioma central de socialidade. Esta noção não se restringe apenas às relações entre os seres humanos, mas se estende a outros domínios, de modo a reger as relações entre as diversas gentes que habitam o cosmos4.

Os Tukano e Desana identificam um grupo de constelações, dentre as quais distinguem algumas que consideram “constelações-chefe” e que são consideradas as “mais importantes”, sendo chamadas Ñohkoa Diarã mahsã. São elas: Aña, Pamo, Muhã, Dahsiu, Yai, Ñohkoa Tero, Wai kahsa, Sio Yahpu, Diayo, Yhe. O termo diarã é comumente traduzido como “reais, puros” e também é usado em referência a questões de definições étnicas, por exemplo, para se referir a alguém considerado um legítimo tukano, usa-se a expressão Yepa mahsu diagu5.

Ao serem perguntados sobre o que caracteriza uma constelação como sendo “importante” ou “chefe”, dizem que são “as maiores” e aquelas cujo ocaso [desaparecimento aparente do astro no horizonte oeste] está relacionado às “grandes chuvas”, ou seja, sua importância está relacionada à sua extensão e à sua associação com a época de inverno.

A tabela abaixo reproduz o ciclo de constelações dos Tukano e Desana do rio Tiquié e indica também a região do céu em que estão situadas e a época do ocaso de cada uma delas6:

Ciclo de constelações dos Tukano e Desana do rio Tiquié
Nome da constelação em Tukano7/ Português Área do céu de referência dos não-indígenas Mês do calendário Juliano gregoriano (não-indígena) em que a constelação está se pondo
Aña siõkhã / Estrela que ilumina jararaca Libra Setembro, outubro, novembro - meados desse mês, e eventualmente até dezembro
Aña ñemeturi / Fígado de jararaca Corvo idem
Aña nimaga / Bolsa de veneno de jararaca Escorpião idem
Aña dieripa / Ovos de jararaca Escorpião idem
Aña ohpu / Corpo de jararaca Escorpião idem
Aña pihkorõ / Rabo de jararaca Sagitário idem
Siphe Phairo / Jararaca de ânus grande Ursa maior Cai entre aña siõkhã e diaso.
Pamo oaduhka / Osso de Tatu Águia Dezembro
Pamo duhpoa / Cabeça de Tatu Águia idem
Pamo uhpu / Corpo de Tatu Águia e Vulpécula idem
Pamo pihkorõ / Rabo de Tatu Seta idem
Muhã / Jacundá Estrelas de Aquário Fevereiro - início a meados do mês
Dahsiu / Camarão Catálogo de Hipparcus e Estrelas de Aquário principalmente idem
Yai siõkhã / Estrela que ilumina a onça Não identificado Março até primeira quinzena (barba e início da cabeça da onça); segunda quinzena de março (corpo da onça); rabo da onça se põe até meados para final de abril, bem junto das Plêiades.
Yai duhpoa / Cabeça da onça Hipparcus e Cassiopéia idem
Yai useka poari / Bigode de onça Não identificado idem
Yai ohpu / Corpo da onça Cassiopéia, Andrômeda e Perseu idem
Yai pihkorõ / Rabo da onça Perseu idem
Ñohkoa Tero (Sio yahpu mahkũ) / Aglomerado de estrela (Filho de Cabo de enxó) Plêiades (3 estrelas próximas a Ñohkoa Tero) Abril, meados para o fim do mês
Wai Kahsa / Jirau de peixe Hyades no touro Abril/Maio, fim do mês de abril até meados de maio
Kaĩ Sarirõ / Suporte de cérebro/tipo de armadilha Entre Hyades e Órion
Sio Yahpu (Ñohkoa tero mahkũ) / Cabo de enxó Órion (3 estrelas próximas a Sio Yahpu) Maio, meados para o final do mês
Diayo / Ariranhas 3 estrelas não identificadas
Yaka / Peixe Cascudo Possivelmente Cão menor
Bihpia / Pássaro Possivelmente entre Gêmeos e Cão Maior
Ñamia / Saúvas da noite Não identificado
Purĩ / Folhas Não identificado
Tohto / Árvore matá matá Não identificado
Uphaigu/ Jabuti Cruzeiro do Sul
Yhe / Garça Virgem e Cabeleira de Berenice Em Agosto e Setembro ocaso de toda a constelação
Ñamakoro / Não identificado

Certas constelações, cujo ocaso se realiza concomitantemente ou seguidamente, são consideradas constelações parceiras, nohkoã bahparitirã. Esse é o caso da dupla Muha e Dahsiu e do conjunto Nohkoa tero, Wai Kahsa, Sio Yahpu; e do grupo Diayo e das constelações Yaka, Bihpia, Ñamia e Purĩ.

Outro ponto que merece destaque na classificação das constelações tukano é que algumas delas, mais especificamente Aña (Jararaca), Pamo (Tatu) e Yai (Onça), são concebidas como constelações segmentadas, divididas em partes que correspondem às partes dos corpos dos animais que elas representam.

A constelação Aña (Jararaca) está constituída por: Aña siõkhã (estrela que ilumina a jararaca), Aña duhpoa (cabeça), Aña nimaga (bolsa de veneno), Aña ñemeturi (fígado), Aña dieripa (ovos), Aña ohpu (corpo) e Aña pihkorõ (rabo).

As partes da constelação Aña (Jararaca): a cabeça, a bolsa de veneno, o fígado, os ovos, o corpo e o rabo (da esquerda para a direita)
As partes da constelação Aña (Jararaca): a cabeça, a bolsa de veneno, o fígado, os ovos, o corpo e o rabo (da esquerda para a direita)


Pamo (Tatu) é composta por: Pamo siõkhã (estrela que ilumina o tatu), Pamo oaduhka (osso), Pamo ohpu (corpo) e pamo pihkorõ (rabo). Já a constelação Yai (Onça), por sua vez está dividida em: Yai siõkhã (estrela que ilumina a onça), Yai useka poari (bigode), Yai duhpoa (cabeça), Yai ohpu (corpo) e Yai pihkorõ (rabo).

A segmentação das constelações também pode ser compreendida à luz do sistema de organização social tukano. A sua divisão entre cabeça, corpo e rabo guarda inegável relação com os termos utilizados na classificação e hierarquização dos sibs tukano. Cada sib se originou de uma parte específica do corpo da anaconda ancestral e assim os sibs são considerados da “cabeça”, do “corpo” ou do “rabo”, o que estabelece uma ordem hierárquica entre os mesmos: os sibs de mais alto nível são considerados “cabeça” e os de mais baixo são considerados “rabo”.

Os eventos mitológicos relativos à origem destas constelações segmentadas narram histórias de personagens que, de diferentes maneiras, foram mortos, cortados, despedaçados ou segmentados e lançados ao céu, transformando-se em gente-estrela (ñohkoa mahsã), em constelações.

O siõkhã e seus significados

Siõkhã é, para os Tukano e Desana, a estrela que fica próxima ou a frente de uma determinada constelação e que se põe antes desta. Ela está lá para “iluminar”, “guiar o caminho” das constelações no seu movimento de passagem pelo céu [sentido leste-oeste]. O siõkhã é considerado parte das constelações e seu ocaso está associado à ocorrência de invernos.

''Yai siõkhã'' (estrela que ilumina a onça) e constelação ''Yai'' (Onça). AEITY/ACIMET. Editoração gráfica: Renata Alves de Souza.
''Yai siõkhã (estrela que ilumina a onça) e constelação Yai (Onça). AEITY/ACIMET. Editoração gráfica: Renata Alves de Souza.


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Yai siõkhã (estrela que ilumina a onça) e constelação Yai (Onça). AEITY/ACIMET - editoração gráfica: Renata Alves de Souza
No depoimento8 de Uremirĩ José Azevedo (Tukano, sib Ñahuri porã), o siõkhã alcança um significado mais profundo, relacionado ao contexto ritual, pois representam os “irmãos-chefe”, responsáveis por guardar ornamentos cerimoniais que estão dentro das constelações.

... os siõkhã são as estrelas que estão na frente das constelações e recebem o nome dos “irmãos chefes” [referência aos irmãos ancestrais dos Tukano]. A primeira estrela de Aña [Jararaca] é Yupuri, que está iluminando essa jararaca, Seribhi, irmão menor de Yupuri, vem na frente de Pamo [Tatu], Doe [irmão maior], está na frente de Yai duhpoa [Cabeça da Onça]... Todos os ornamentos que a pessoa usa, seja o kumu [benzedor], ou o pajé, pode ser os ornamentos de cabeça, o colar de quartzo, o cinto de dentes de onça, yuhtasero [faixa de baixo do joelho], kihtio [chocalho que se põe nos tornozelos], até as flautas sagradas, todos os ornamentos deles, isso que eles estão alumiando pra poder proteger mesmo... Eles guardam os ornamentos onde eles moram... Por isso que tem umas estrelas assim perto das constelações... Estas estrelas iluminam estas constelações e dentro destas constelações estão todos estes ornamentos...”9
Depoimento de Uremirĩ José Azevedo. Tradução: Seribhi Dario Alves Azevedo.

O ciclo de constelações e os demais ciclos

Para os Tukano Orientais, os movimentos leste-oeste que as constelações realizam conformam um ciclo astronômico anual. Os Tukano e Desana do médio Tiquié atribuem grande importância ao movimento de ocaso das constelações, concebendo-o como marcador da ocorrência de invernos ou enchentes, designados como poero (enchente de rio). Os invernos levam os nomes das constelações que estão “baixando” em determinada época. Atualmente também são utilizados eventos do calendário cristão para definir os invernos, por exemplo, Yai poero (enchente de onça) também é chamada enchente da páscoa, sendo muito comum o uso destes termos no dia-a-dia. O ocaso de cada parte de uma constelação é associado à ocorrência de um período de chuvas, que pode ser curto ou longo, dependendo da extensão de sua parte. As enchentes relacionadas ao ocaso do corpo da onça e do corpo da jararaca, por exemplo, são longas, visto que estão associadas às partes grandes destes animais.

Esses invernos são intercalados por verões curtos ou mais longos, chamados kuma ou wetiro (vazante do rio). Os verões mais longos são nomeados de acordo com outros fenômenos, como períodos dos ciclos de determinada fruta, ou animal. Já os pequenos verões, muitas vezes, recebem o nome da constelação vigente. Os invernos e verões marcam a ocorrência de uma série de fenômenos ecológicos que por sua vez determina a realização de atividades econômicas e rituais. A inter-relação de todos estes ciclos de fenômenos constitui um calendário astronômico, ecológico, econômico e ritual.

Tanto na fala dos conhecedores tukano e desana como na literatura, Ñohkoa Tero (Plêiades) é a constelação mais diretamente relacionada ao ciclo ritual. Para os Tuyuka, por exemplo: “o ano é definido pelo ciclo da grande constelação de Plêiades. Quando ela aponta no nascente de madrugada é sinal de ano novo. Neste período as madrugadas têm um nevoeiro frio (y'u's'u'are), é tempo de iniciação masculina, coincidindo aproximadamente com o mês de julho. O ano começa, portanto, com o fim das enchentes [em geral segunda metade de julho]” (AEITU: 2005).

Segundo Hugh-Jones (1979), o timing do ritual de jurupari dos Barasana está intimamente relacionado com os movimentos da constelação Plêiades no céu. Os Barasana dizem que o jurupari deve ser realizado quando a pupunha está madura (fevereiro-março), também dizem que deveria ocorrer antes da chegada da chuva de Plêiades, aquela que marca o início da principal estação chuvosa e causa um aumento dramático do nível dos rios.

Imagens das constelações na mitologia tukano

As constelações estão atreladas a eventos vividos pelos personagens míticos que constituíram a primeira humanidade. Nessa época não havia a divisão nítida entre grupos étnicos e sibs e, portanto, as regras de parentesco e de casamento não estavam bem estabelecidas. As narrativas relativas à vida destes personagens falam muitas vezes de sua desobediência ou mau comportamento ou de seus casamentos com mulheres não-humanas, que fracassaram por motivos diversos: morte das esposas, incompatibilidade entre os modos de vidas da esposa e do esposo.

Os relatos sobre a origem das constelações estão presentes em narrativas mais amplas sobre a época da Gente de Aparecimento e, na maioria das vezes, se intercruzam. As constelações não possuem um significado único ou fixo, podem ter vários significados e corresponder a múltiplas imagens de acordo com as diferentes versões de um mito, ou até mesmo ao longo de uma única narrativa.

Um exemplo ilustrativo é a história que relata a origem da constelação Aña (Jararaca). Sua origem está indiretamente inserida na história de Yepa Oakhu (ancestral dos Tukano, também chamado Yepa Muhipũ ou Lua), seu irmão menor e as filhas de Buhpo, o Trovão - que são Aña mahsã (gente-jararaca). Nesta narrativa também está presente a imagem de Sio Yahpu (cabo de enxó).

Veja a seguir um resumo do mito narrado por Yupuri Feliciano Azevedo (Tukano, sib Ñahuri Porã).

Yepa Oakhu vivia na sua casa yohkoãdiakawi (casa das estrelas). Todo dia via o reflexo da constelação Sio Yahpu (cabo de enxó) e havia uma estrela que era a mais bonita dessa constelação. Um dia ela apareceu fisicamente e ele casou com ela. Buhpo, o Trovão, tinha inveja dele pelo fato deste não querer se casar com suas filhas, Aña mahsã (gente-jararaca).

Buhpo convidou Yepa Oakhu para ir a um caxiri com intuito de matar sua esposa. A esposa não foi à festa, mas foi morta por uma cobra no porto. Yepa Oakhuuhpo, que morreu. Oakhu decide ir embora, mas seu irmão menor fica, pois está namorando uma filha de Buhpo.

Oakhu chega em casa e vê sua esposa morta transformada em peixe pirarara e seu filho transformado em pássaro pusikhá. Decide voltar para buscar seu irmão. A filha de Buhpo já havia matado seu irmão. Chegando lá é convidado pela filha do Buhpo (gente-jararaca) para ir tomar banho no porto. Ela estava tecendo yuhtasero (tornozeleira). A filha do Buhpo tenta matá-lo transformando um toco de pau em jararaca. Yepa Oakhu corta a cabeça da jararaca com Sio yahpu (cabo de enxó). Era o irmão maior dela. Depois sai mais uma cobra de dentro do pau oco. Yepa Oakhu decepou a cabeça da cobra. Era o irmão menor dela." Narrativa publicada na Coleção Narradores Indígenas, volume 5, 2003.

Uremirĩ Aprígio Azevedo e Ahkuto Mariano Azevedo (Tukano, sib Ñahuri porã) ao narrarem a mesma história explicam que: “(...) Yepa Oakhu corta a jararaca com Sio Yahpu (cabo de enxó), e ela é lançada ao céu, tornando-se a constelação de Aña (Jararaca)”.

Segundo Diakuru e Kisibi (Desana, sib Wahari Diputiro porã), as histórias dessas constelações se articulam e fazem parte de uma narrativa semelhante, mas aqui é o herói que usa uma jararaca para vingar a morte de sua esposa.

A constelação Aña surge para Deyubari Goãmu10 vingar-se de seus cunhados (neká masã, gente-estrela) que causaram a morte de sua esposa enquanto recolhia peixes. Durante a festa, Deyubari Goãmu tirou as cordas dos pelos de onça e de macacos presas nos seus ornamentos de cabeça e com elas formou o corpo de uma cobra jararaca. Com seu enfeite da canela (waituru) fez a cabeça da jararaca, com fio de tucum formou o dente da cobra e com o caapi 11 fez o veneno dela. Enrolou a jararaca no yegu (cetro-maracá) e com ele tocou o pé do segundo e do terceiro bayá (mestre de dança) para que a cobra os mordesse. O segundo bayá morreu na hora, o terceiro foi salvo com orações e remédios do mato.

Durante a viagem de volta pegou a jararaca que carregava nas costas e jogou-a para o céu. Quando ele estava dançando na maloca de neká masá (gente-estrela), a corda ficou toda banhada de suor, por isso ela se transformou em chuva (inverno). Como Deyubari Goãmu jogou a jararaca para longe dele, o inverno associado a ela é comprido. Deyubari Goãmu amaldiçoou a humanidade e escondeu os peixes no ânus da jararaca para que a humanidade não pudesse mais encontrar peixes e ficasse triste junto com ele, é por isso que nessa enchente é difícil encontrar peixes (Fernandes e Fernandes, 2006).

Uma leitura interessante de se fazer dos mitos de origem de constelações é privilegiar, dentre as múltiplas imagens e significados das constelações, aqueles relativos ao contexto ritual. Esta leitura não é única possível, mas detém inegavelmente uma riqueza ímpar tanto em termos estéticos como cosmológicos.

A constelação Aña (Jararaca), por exemplo, possui diversas imagens e significados a ela associados, como pudemos descobrir ao longo deste texto. Na história de Yepa Oakhu há a tornozeleira Yuhtasero que corresponde ao corpo de Aña; os dentes de cobra que estão associados à cabeça de jararaca e os filhos de Buhpo que são gente-jararaca. Já na história de Deyubari Goãmu aparecem o fio de tucum, como dente da jararaca, e o caapi, o veneno da cobra, como imagens associadas a Aña.

Há um outro mito, sobre a origem da noite, que demonstra mais claramente que um dos modos de se compreender a correlação entre constelações, contexto ritual e adornos cerimoniais é atentar ao fato de que, na mitologia tukano, a “caixa da noite” pode ser interpretada como uma caixa de adornos cerimoniais. Neste mito os irmãos-chefe, correlacionados anteriormente aos siõkhã, desempenham papel fundamental. A análise de diferentes mitos torna evidente a relação entre as constelações, os ornamentos rituais e as estrelas siõkhã, delineando-se, assim, um significado profundo para as constelações na cosmologia tukano.

Veja aqui a versão resumida da narrativa de Ñahuri Miguel Azevedo (Tukano, do sib Hausirõ porã).

Os Pamuri mahsã (Gente da Transformação) ainda viviam na casa do Rio de Leite, e não tinham a divisão do tempo em dia e noite. Por isso vão até a Ñamiriwi (Casa da Noite) pedir ao Dono da noite (Ñamirisota) a caixa da noite. A caixa da noite consiste numa caixa de adornos cerimoniais, que contém todos os ornamentos e enfeites de danças. Para entregá-la a Doetiro, Yupuri e Yepasuria (ou Ñamisuria), o Dono da Noite prepara uma cerimônia. Ao entregá-la ele explica a eles cada objeto que contém a caixa e como eles devem ser utilizados posteriormente.

Diz ainda que nos quatro pontos cardeais existem ganchos que pendem a noite. Ensina, depois da meia-noite, a desmanchar a amarração dos ganchos que seguram a caixa, e como eles deveriam guardar os instrumentos e ornamentos, depois de um movimento de dança. Isso foi feito até o amanhecer e é por isso que os bayá dançam até hoje durante toda a noite. Daí segue-se o evento em que eles abrem a caixa antes do combinado e deixam sair uma nuvem escura, chuvisco e temporal. O único que conseguiu seguir as recomendações do Dono da Noite foi Yepasuria, que se ornamentou, pronunciando o nome de cada enfeite e juntando-os. À meia-noite começou a reza desmanchando os ganchos presos nas quatro direções. Começou a tirar e guardar os ornamentos, assim o dia começou a chegar. Assim que começou o dia e a noite" Narrativa publicada na Coleção Narradores Indígenas, volume 5, 2003.

Notas

1. Quando utilizo Tukano Orientais me refiro de maneira geral à família lingüística que abrange etnias como: Tukano, Desana, Tuyuka, Barasana etc. Quando utilizo apenas Tukano me refiro ao grupo étnico.


2. Na mitologia tukano 'U'mukho Ñehk'u, o Avô do Universo criou este mundo e através do sopro do cigarro, a primeira humanidade, Gente do Aparecimento: Yepa Oãkh'u, ou Yepa Muhipu (Lua), Dehsubari Oãkh'u', Warãri Oakh'u', Yupuri Basebo, Buhtuiari Oãkh'u (homens) e Amõ ou Yepario, Yupahkó, Yepáñiõ, Pirõ Duhigó (mulheres). Yepa Oãkh'u através dos conhecimentos obtidos com o Avô do Universo criou a segunda humanidade: Doetiro, Yupuri e Buú (homens) e Yepario, Yupahko, Duhigo (mulheres). No processo de formação da humanidade atual, os primeiros humanos se transformaram primeiramente em pássaros, atravessaram o céu pela Via Láctea, adentraram no Lago de Leite, se transformaram em peixes, realizaram uma viagem no ventre de uma Cobra Canoa - a anaconda ancestral, ao longo do Rio de Leite - e finalmente emergiram na terra através do Buraco da Transformação, como Pam'u'ri mahsã, Gente da Transformação.


3. Termo antropólogico usado para designar grupos de descendência em linha paterna, nomeados e hierarquizados.


4. Não faltam exemplos para ilustrar esta extensão do sistema terminológico e de parentesco a outros domínios que não o dos seres humanos. Alguns exemplos: segundo depoimentos dos kumua (especialistas xamânicos ou benzedores) tukano do alto Tiquié, entre as várias espécies de manivas que eles identificam, algumas são consideradas “manivas-chefe”, pois são aquelas que surgiram no início do mundo. Em relação aos peixes, Cabalzar afirma que “assim como os homens, organizados em grupos nomeados e hierarquizados, os peixes também estão agrupados, têm seus chefes, bayaroa e kumua (...)” (2005: 76).


5. Ver verbete di’a no dicionário Tukano-Português de Ramirez (1997).


6. Tabela adaptada de Cardoso (2007). Para a descrição detalhada da composição de cada uma das constelações, consultar esta referência.


7. Os nomes das constelações foram registrados na língua Tukano que é a língua atualmente falada pelos Tukano e Desana do rio Tiquié.


8. Depoimento traduzido por Seribhi Dario Alves Azevedo.


9. Estes “irmãos-chefe” ou ancestrais dos Tukano também são associados ao planeta Vênus. Na versão de Ñahuri Miguel Azevedo (Tukano, sib Hausirõ Porã) a aparição matutina de Vênus corresponde a Seribhi, “irmão menor”, e a aparição noturna corresponde a Doe, “irmão maior”. Os irmãos, por não obedecerem aos conselhos de seu pai, foram jogados por seu pai Basebo, o dono da alimentação, em lugares opostos do mundo, leste e oeste. Ao serem colocados em seus lugares se transformaram em Ñohkoa Mahsã, gente-estrela, Seribhi siõkha e Doe siõkha (Ñahuri e Kumarõ, 2003: 97).


10. Este personagem corresponde a Dehsubari Oãkhu na mitologia tukano e é da primeira humanidade, Gente do Aparecimento.


11. Bebida alucinógena ingerida em contexto ritual, feita a base de Banisteriopsis sp.


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