De Povos Indígenas no Brasil
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Jipohan é gente como você

Jurusi uhu, Pa'hi e Tatitu, três membros do povo Zo'é, conversam com uma kirahi ("branca"), a antropóloga Dominique Gallois - aldeia Zawarakiaven, Cuminapanema (PA), 1992

Jurusi uhu — Ele fabricou os Zo'é, há muito tempo atrás. Como é que os Kirahi chamam Jipohan?

Dominique Gallois — Jipohan, não sei!

Jurusi uhu — Aquele que nos refez, no passado? Foi quando o dilúvio nos engoliu, quando as grandes águas chegaram e nos engoliram. Foi quando queimou tudo, quando os Zo'é queimaram. Os Zo'é haviam perecido no dilúvio, não existiam mais. Tinham acabado. Foi então que Jipohan nos refez, bem pequenos. Foi pequeninos assim que ele nos fez! Refez os que haviam sido engolidos pelo dilúvio. Ele foi nos fazendo de novo, pequeninos. Você, Kirahi, os de tua espécie não tinham perecido.

Dominique Gallois — Quem?

Jurusi uhu — Você! Os Kirahi! Era para que Jipohan pudesse refazer os Zo'é que os Kirahi não haviam perecido. Eles estavam sendo levado pelas águas. Para voltar, seguravam tartarugas, de noite. Os Kirahi andavam com as tartarugas. Seguravam nas costas de tartarugas warara e (assim) não desapareceram.

Dominique Gallois — Então os Kirahi apareceram?

Jurusi uhu — Dentro de uma cabaça, estavam flutuando numa cabaça como esta, indo embora! (...). Os Kirahi estavam se distanciando, flutuando numa cabaça, flutuando e se distanciando (...). Estavam ainda perto de onde Jipohan estava fazendo os Zo'é, começando a fazê-los, pequenos. Ele trabalhava e novos Zo'é apareciam. Continuava e outros apareciam. Estavam começando a aparecer. Iguais aos que haviam sido engolidos pelo dilúvio. Já havia outros no lugar deles! Refez todos, como eles eram. Ele foi montando os ossos, pegando nos ossos, os ossos do pé, como estes. Com os ossos, fez os Zo'é de novo. Fazia-nos pequenos. E fazia outro, outro, outro, foi fazendo de novo. Foi há muito tempo atrás.

Dominique Gallois — A partir dos ossos?

Jurusi uhu — Com os ossos. Ele começou a segurar um, ficava em pé! Estava quase feito, ali mesmo. Segurou para ver. Então estava pronto. Pronto! Acabou! Ficaram assim. Tinha terminado. E ficaram assim (...). Depois, o dilúvio não voltou. Começaram a aumentar. Tiveram filhos, filhos e filhos e ficaram muito numerosos. Então os Zo'é existiam. Os Zo'é tiveram filhos. Foi Jipohan que transformou os Zo'é, Jipohan mesmo, há muito tempo. Os primeiros Zo'é. Ele nos fez! Depois os Zo'é começaram a levantar, levantar de novo e de novo, até que todos estivessem aí!

Dominique Gallois — Onde está Jipohan agora?

Jurusi uhu — Agora parece que ele virou Kirahi. Você não viu Jipohan?

Dominique Gallois — Não o vi.

Jurusi uhu — Não o viu mesmo?

Dominique Gallois — Mas onde foi Jipohan?

Jurusi uhu — Longe, na direção dos Kirahi, muito longe. É lá que está Jipohan.

Dominique Gallois — Longe, no rumo do Cuminapanema?

Jurusi uhu — Passando o outro lado do Cuminapanema. Eu não sei, não fui lá! Não sei, nunca fui de avião, por isso não vi Jipohan, não sei.

Pa'hi — Somente o finado Sihe é que sabia, eu ouvi a fala do finado Sihe, foi o finado Sihe me ensinou quando era pequena.

Jurusi uhu — Ele não disse por onde partiu Jipohan. Disse que estava longe, por ali, muito longe.

Tatitu — Mas você o viu também, Jipohan é gente como você!

Pa'hi — Jipohan é como você. Antes, Jipohan usava roupa, como a tua, igual a você.

Jurusi uhu — Era como você, ele usava essas coisas [mostra roupa, caderno, gravador]. Tinha tudo isso, igual a essas coisas. Jipohan também tinha, era como você. Ele existe mesmo. Tinha um corpo como Kirahi. Como você vê o corpo dos Kirahi. Gente! (...) Jipohan tem mesmo muita roupa. É Jipohan mesmo que fabricou roupas como estas que você usa (...). Foi longe, pela beira do Erepecuru, por ali ele talvez tenha aparecido. A moradia de Jipohan é muito longe, fica além dos Kirahi, é o que eu digo, pela fala do finado Sihe.

Os brancos na paisagem da criação dos Zo'é, por Dominique Gallois (antropóloga, USP)

Nas narrativas dos Zo'é, povo Tupi do Cuminapanema, os eventos relacionados à origem envolvem sempre as diferentes categorias de humanos reconhecidas por este povo. A leste, estavam os inimigos Tapahaj, responsabilizados pela explosão que provocou o cataclisma — um incêndio seguido do dilúvio — que destruiu a primeira humanidade. Os brancos, ou Kirahi, estavam presentes nesta paisagem das origens, alguns deles testemunhando o momento em que o herói Jipohan refaz os Zo'e com os restos da humanidade anterior.

Como para outros povos de tradição Tupi-Guarani, a criação não é concebida pelos Zo'é como um evento ipso-facto, mas como uma ocorrência entre outras, dentro do movimento cíclico que faz alterar a relação dos homens entre si. Assim, pouco importa se o herói que refaz os Zo'é após o cataclisma, Jipohan, é branco ou não é. Ele era "como os brancos" e possuía bens semelhantes aos dos Kirahi de hoje.

O diálogo, editado e traduzido livremente, foi gravado na aldeia Zawarakiaven em julho de 1992. O assunto da origem dos Zo'é surgiu quando estava conversando com Jurusi uhu e sua família, a respeito da localização de aldeias antigas e de conflitos com inimigos. As duas esposas de Jurusi uhu faziam intervenções para me fazer entender que cabia a mim, não a eles, dar notícias do herói Jipohan, cujo destino, após os feitos contados nesta narrativa, pouco preocupam os Zo'é. Afinal, quando terminou sua obra recriadora, o herói partiu rumo aos brancos e, por isso, somos nós, os Kirahi, que devemos dar notícias dele e trazer de volta aos Zo'é todos esses bens que Jipohan já tinha lhes mostrado, quando ele fez surgir a atual humanidade.

Jurusi uhu, com cerca de 50 anos, não é chefe nem xamã, mas um "homem importante" entre os Zo'é, entre os quais a posição de "representante" de determinados grupos locais está em construção, no novo contexto de relações e convivência com agentes de assistência e visitantes da área. No decorrer das minhas estadias entre os Zo'é, Jurusi uhu esteve sempre interessado em conversas e ensinamentos, convidando-me a acompanhar sua família em várias viagens pela área. Ele sempre foi um dos mais interessados em reconhecer nossas "aldeias" e é neste contexto que liderou a visita que alguns Zo'e fizeram aos Waiãpi do Amapá, em 1996.