De Povos Indígenas no Brasil

Licenciamento ambiental em xeque

por Maurício Guetta, advogado, ISA. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

O Direito Socioambiental vive tempos de retrocessos. Após a aprovação da Lei no 12.651/2012, que dilacerou o antigo Código Florestal, e da Lei no 13.123/2015, que abriu as portas da exploração desenfreada da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, a “bola da vez” eleita pelo Congresso Nacional, a serviço de interesses privados, é, sem dúvida alguma, o licenciamento ambiental, principal instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, com ampla proteção constitucional.

Considerado um mero entrave burocrático e custoso por determinados setores, o licenciamento ambiental, consolidado há mais de 30 anos no país, possui fundamental relevância para a preservação dos direitos difusos da sociedade brasileira ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade vida; para a proteção dos direitos das populações atingidas pelos impactos decorrentes da instalação e operação de empreendimentos potencialmente poluidores; para a composição ou atenuação de conflitos; além, evidentemente, de funcionar como instrumento imprescindível aos desideratos constitucionais da prevenção e mitigação de danos.

Importante pontuar que muitos dos entraves à efetividade do licenciamento não seriam resolvidos por meras alterações legislativas, como se verifica, por exemplo, com a desestruturação dos órgãos públicos responsáveis pela emissão de atos administrativos no bojo do procedimento de licenciamento ambiental.

Tramitam, atualmente, 40 proposições legislativas destinadas a alterar a atual legislação sobre licenciamento ambiental. Entre elas, destacam-se, pela densidade política com que tramitam no Congresso Nacional e pelo conteúdo, os seguintes: Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 65/2012, Projeto de Lei do Senado – PLS n.o 654/2015 e Projeto de Lei – PL nº 3729/2004.

Quanto à PEC no 65/2012, que pretende inserir um § 7o ao artigo 225 da Constituição, ao prever que a mera apresentação de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) resulta em autorização para a execução da obra, o projeto pretende simplesmente extinguir o licenciamento ambiental, intenção que configura um gravíssimo e inaceitável retrocesso aos direitos fundamentais da sociedade brasileira. Ao estabelecer que as obras não poderão ser suspensas ou canceladas após a apresentação do EIA, a PEC no 65/2012 fere cláusulas pétreas relacionadas aos princípios da separação dos poderes, da inafastabilidade do controle jurisdicional, da efetividade das decisões judiciais e do acesso à justiça, cânones essenciais do Estado Democrático de Direito.

Já o PLS no 654/2015 pretende que os empreendimentos de infraestrutura considerados estratégicos para o interesse nacional sejam licenciados através de um singular e diminuto rito procedimental, o que faz mediante uma série de medidas para flexibilizar o controle exercido pelos órgãos licenciadores e demais órgãos envolvidos no licenciamento ambiental. Assim como a PEC no 65/2012, o conteúdo do PLS no 654/2015 representa grave ameaça aos direitos fundamentais protegidos pelo licenciamento ambiental, na medida em que estabelece o menor grau de prevenção, controle e fiscalização, sem qualquer direito à informação e participação, justamente para empreendimentos causadores de significativa degradação socioambiental. Ademais, é preciso considerar que, ao afrouxar o controle e prevenção das atividades potencialmente poluidoras, o PLS aumenta os riscos de ocorrência de desastres socioambientais.

Por fim, o PL no 3729/2004 tem por escopo criar a “lei geral do licenciamento ambiental”. Apesar de ser grande o número de substitutivos (16) atrelados ao seu processo legislativo, dois são os textos que, quando do fechamento deste artigo, podem ser votados pelo Plenário da Câmara dos Deputados.

O primeiro, relatado pelo deputado ruralista Mauro Pereira (PMDB/ RS), possui conteúdo altamente preocupante, na direção da intensa flexibilização do licenciamento, para além de sua precariedade quanto à técnica legislativa. Apenas para se ter uma ideia, esse substitutivo estabelece a possibilidade de cada estado federativo definir, autonomamente, quais empreendimentos serão objeto ou não de licenciamento, bem como quais procedimentos e estudos ambientais serão aplicados em cada caso. Estaria, com isso, instaurada a “guerra pela flexibilização do licenciamento”, a exemplo da “guerra fiscal”, deixando o licenciamento submetido a interesses de atrair investimentos de cada estado. Esse texto determina, ainda, que o licenciamento simplificado, de caráter autodeclaratório, seja aplicável à maioria das atividades licenciadas, além de prever uma série de mecanismos para reduzir a participação e simplificar procedimentos e estudos. Não bastasse, estabelece dispensas de licenciamento para atividades potencialmente poluidoras, atendendo diretamente interesses privados de setores específicos, como o agronegócio. Há, portanto, uma série de inconstitucionalidades nesse substitutivo ao projeto de lei.

O segundo texto, com maior aderência política, é o substitutivo a ser apresentado pelo Governo Federal, sobre o qual deixaremos de apresentar considerações por ainda não ter qualquer definição sobre seu conteúdo quando da conclusão desse artigo.

Qualquer que seja a proposição legislativa, é importante ter em mente que, diante das disposições constitucionais aplicáveis à matéria, bem como da relevância crucial desse instrumento para a efetividade dos direitos fundamentais de natureza socioambiental, o licenciamento ambiental deve ser fortalecido pelo Estado brasileiro, garantindo-se mais efetividade aos direitos à informação e à participação social, melhores condições institucionais aos órgãos ambientais, independência e autonomia às decisões dos agentes públicos, melhoria da qualidade dos estudos de Avaliação de Impacto Ambiental, entre outras medidas amplamente debatidas com os mais diversos setores da sociedade e do Poder Público, incluindo-se o Ministério Público (Federal e Estaduais), a comunidade científica, os órgãos ambientais, os movimentos sociais, os povos indígenas e outros.

(outubro, 2016)