De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Ugo Maia Andrade, 2002

Karuazu

Autodenominação
Onde estão Quantos são
AL 1013 (Funasa, 2010)
Família linguística
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O longo processo de migração experimentado por famílias pankararu desde a extinção oficial do aldeamento de Brejo dos Padres, no penúltimo quartel do século XIX, promoveu a formação recente de coletivos de identidade indígena genealógica e culturalmente ligados aos índios Pankararu (PE). Dentre esses grupos estão os Karuazu, constituídos a partir de uma das frentes de migração do aldeamento matriz pernambucano que foi responsável também pela constituição dos grupos Geripankó e Kalankó, dispersos entre os municípios alagoanos de Água Branca e Pariconha, alto sertão do estado e a cerca de dois dias de caminhada de Brejo dos Padres. Conservando fortes vínculos com os Pankararu e com o território de origem, os Karuazu vêm há gerações atualizando suas referências sociocosmológicas através de viagens regulares ao aldeamento matriz, motivadas por propósitos rituais ou pelo simples desejo de rever os parentes, vínculos que proporcionaram sua recente etnogênese.

Ao lado de tais referências, os casamentos interétnicos entre as famílias provenientes de Brejo dos Padres e negros locais comporiam um meio fundamental de inserção econômica e social das famílias caboclas na nova terra, possibilitando-lhes, além disso, novas referências necessárias à construção de uma territorialidade paralela àquela representada pelo aldeamento de Brejo dos Padres. Desta forma, sobrepondo, articulando, costurando e sintetizando referências e memórias, os Karuazu demonstram como movimentos históricos de diásporas indígenas podem originar ricos e criativos processos sociais onde o local e o translocal, o endógeno e o exógeno encontram-se a fim de produzir novas identidades.  

Língua

A língua de uso corrente é o português, com acento regional. Há uma série de palavras de uso restrito, associado aos desempenhos rituais do praiá e toré, ditas pertencerem ao léxico da língua Pankararu e que se referem, basicamente, a artefatos e agentes rituais.

Localização e história de ocupação territorial

Os Karuazu estão concentrados nos povoados de Tanque e Campinhos, município de Pariconha, extremo oeste do estado de Alagoas. Essas três localidades surgiram quase simultâneamente no século XIX como núcleos de povoamento gerados com a abertura de fazendas de gado em meio à caatinga, uma iniciativa das famílias “Casemiro”, “Panta” e “Alves”, dentre outras, que se instalaram na região pouco antes da chegada das primeiras famílias vindas do aldeamento pernambucano de Brejo dos Padres.

A história da família Panta, de origem negra, é fundamental para os Karuazu, pois condensa uma série de eventos que fazem parte da história de constituição desse povo. Assim, é dos Pantas que provém os principais elementos da territorialidade karuazu, produzindo os valores que reverteram a translocalidade das famílias que vieram de Brejo dos Padres e que, mesmo se instalando no Tanque e Campinhos, mantiveram o aldeamento pankararu como território ritual de referência. A linhagem dos Pantas contribuiu significativamente para a construção de um sentido local da história karuazu, denotando a assimilação social de um segmento negro dentre os Karuazu de hoje e a ampliação para o grupo de uma história familiar específica e própria deste segmento, passando a atuar, ao menos parcialmente, como patrimônio coletivo. O nome Panta decorre de Pantaleão de Araújo Andrade, um negro que, no século XIX, chegou onde hoje está o povoado de Campinhos e herdou de seu pai, Joaquim José de Andrade, vulgo “Velho Andrade”, parte das terras que este havia adquirido nos arredores da cidade de Água Branca. Dentre as propriedades de Pantaleão estava a fazenda Cazumba, um sítio com 43 hectares localizado próximo ao povoado de Campinhos, terra depois passada a seus filhos por herança e onde boa parte de seus descendentes se criou, constituindo-se em terra com sentimento afetivo forte agregado ao seu valor de propriedade. Com base nas entrevistas realizadas durante o trabalho de campo, Pantaleão Andrade foi o primeiro dos filhos do “Velho Andrade” a fixar residência nos arredores das terras que comporiam o povoado de Campinhos, morando também parte de sua vida na cidade de Pariconha.

Com sua prosperidade como proprietário rural, somando às terras herdadas outras adquiridas por compra ou reivindicação (no caso de terras devolutas), Pantaleão de Araújo tornou-se uma referência para os caboclos [isto é, aqueles que descendem de populações indígenas aldeadas] que vinham de Brejo dos Padres atrás de emprego e, além disso, casou alguns de seus filhos e filhas com esses índios. Os casamentos interétnicos entre negros e índios já eram uma realidade acentuada no aldeamento de Brejo dos Padres pouco antes dele ser declarado extinto em 1875 e tal modalidade de matrimônio – eleita estratégia oficial de “desindianização” – representou uma possibilidade viável de acesso à terra para negros escravos ou foros e colonos brancos pobres.

Mediante as trocas matrimoniais entre os Pantas e os caboclos originários de Brejo dos Padres que chegavam aos arredores de Pariconha, a memória deste segmento negro pode posteriormente ser absorvida e incorporada àquelas das famílias que viriam a compor o conjunto karuazu. Para as famílias que chegaram ao povoado do Tanque, onde hoje está a maioria das famílias originárias de Brejo dos Padres, o intercâmbio com os Pantas foi relativamente menor, mas o efeito de assimilação da história semelhante. Tal incorporação deve ser vista dentro do quadro recente de rearranjo de uma história karuazu com base nas narrativas e experiências familiares de suas partes e no avivamento de uma determinada história heróica relativa a uma linhagem que, mesmo não sendo indígena nem de origem pankararu, passou a integrar parte significativa do patrimônio desse grupo, porque a ele cedeu referências de autoctonia que serviram para a construção de seu sentimento de localidade. Foi-se, então, tecendo uma territorialidade pautada, parcialmente, em recursos e emblemas emprestados dos Pantas, tradicional família de Campinhos, que doaram às famílias caboclas migradas de Brejo dos Padres referências para a construção de uma história local calcada na ocupação de sua nova terra.

Longe de suscitar preocupações com a manutenção de uma “pureza étnica” – ação desmedida, já que a mistura é uma dinâmica social trazida de Brejo dos Padres – a incorporação dos Pantas repetia um modelo aberto de alianças já posto em prática durante as fusões étnicas promovidas pelas agências coloniais. Ao misturarem-se e se abrirem aos matrimônios interétnicos, os caboclos provenientes de Brejo dos Padres estavam se reinventando enquanto um grupo social específico, pois construindo uma nova história a partir da fusão de memórias diversas.

A participação efetiva dos Pantas nessa história – a dos Karuazu – está condensada no próprio etnônimo do grupo criado, no final dos anos noventa, pelo cacique Edvaldo de Araújo:

A origem [do nome] dos Karuazu é assim: essa terra que nós temos aqui, chamada Cazumba, foi meu avô, Pantaleão de Araújo Andrade, quem pôs esse nome, tradição dele. Nós somos filhos dos Pankararu e somos filhos de Cazumba [...] aí eu juntei as letras de Pankararu e Cazumba e deu Karuazu.

População

Os Karuazu constituem uma população de pouco mais de 1000 indivíduos. No povoado de Tanque há uma concentração expressiva de famílias karuazu, comparando-se com a população total do povoado e com a população de origem indígena de Campinhos. Em junho de 2002, por ocasião dos trabalhos de reconhecimento étnico do grupo, cerca 70% das famílias de Tanque se auto-identificava como de origem indígena, para um índice aproximadamente inverso encontrado na mesma ocasião em Campinhos, isto é, 30% de índios contra 70% de não-índios. Mesmo considerando-se que a população total de Campinhos é significativamente maior que a de Tanque, cerca de 2/3 do total das famílias karuazu residia no povoado de Tanque ou em sítios próximos e o restante no povoado de Campinhos e localidades anexas.

Aspectos ecológicos e econômicos

A atividade econômica das famílias karuazu está dirigida basicamente para a agricultura doméstica – incluindo aí o plantio de mandioca para a produção de farinha e as culturas de milho e feijão – e para a criação de pequenos animais, sobretudo ovelhas, galinhas e porcos. Algumas famílias, entretanto, obtêm excedentes de produção de farinha, milho e feijão que são comercializados na região; outras vendem sua mão-de-obra para a produção de farinha em larga escala ou para Usineiros da Zona da Mata, atividades sazonais que permitem o incremento irregular da renda doméstica.

Embora decisivas para a renda das Unidades Domésticas (UD's) onde estão presentes, as aposentadorias rurais alcançavam índice relativamente baixo (cerca de 23% das UD’s tem ao menos um aposentado) – similar àquele observado entre os Kalankó no mesmo período – o que, dentre outros motivos, provavelmente decorre do alto número de jovens e crianças. A presença de aposentados nas UD's garante uma renda mensal fixa igual ou superior a um salário mínimo; nas demais UD's a renda mensal é bastante flutuante e seu cálculo difícil, já que nem sempre as famílias obtêm proventos decorrentes do assalariamento ou da comercialização de excedentes, vivendo apenas da subsistência. Isto ocorre ainda que a média de pessoas economicamente ativas por UD seja expressiva, terminando por incentivar a migração para cidades como Maceió e São Paulo.  

Formação da comunidade

A herança cultural e os vínculos genealógicos com os Pankararu de Brejo dos Padres conferem aos Karuazu a natureza indígena de sua identidade, mas são várias as matrizes étnicas – secundárias, indígenas ou não – presentes nas famílias que constituem o grupo. Este fato é congruente com a própria constituição pluriétnica dos Pankararu em função dos vários processos coloniais que fizeram deles produto de rotinas coloniais de territorialização e fusões. Importa, portanto, destacar entre os Karuazu outras matrizes que, ao entrarem profundamente em sua história, permitiram ao grupo uma identidade distinta daquela dos Pankararu – sem, entretanto, negar-lhes a posição de “ponta de rama” desse grupo – e a produção de formas específicas de interação social e categorias de autopercepção. Algumas dessas matrizes étnicas foram introduzidas por famílias cuja origem remonta aos grupos Atikum (PE), Pankararé (BA), Fulni-ô (PE), Tingui-Botó (AL) e Kariri-Xocó (AL). Contudo, a que carrega importância equivalente à matriz de Brejo dos Padres em termos de contribuição para a formação do grupo é aquela representada pela família Panta, o principal segmento negro da composição karuazu.

De forma semelhante ao que ocorreu na etnogênese dos Kalankó, que contou com o apoio determinante do ex-cacique dos Geripankó, Genésio Miranda, de lideranças pankararu de Brejo dos Padres e do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), a presença desses agentes foi fundamental para compor uma rede de solidariedade formalizada diante da participação dos Karuazu na matriz sociocosmológica pankararu. Esta qualidade, entretanto, não seria suficiente para fornecer os elementos próprios de identidade e representações sobre si distintos daqueles presentes em Brejo dos Padres, o que viria ocorrer com um somatório de fatores: a presença dos Pantas, as experiências da diáspora trazidas pelas famílias migradas de Brejo dos Padres e o novo contexto de interação entre essas famílias e os vizinhos não-índios da região de Pariconha. O intercâmbio matrimonial entre as famílias de origem pankararu e a população local (negros, brancos e mestiços) serviu para reforçar entre a população vizinha de Campinhos um marco de distinção aplicado a eles que, se não era exatamente positivo, também não tinha a conotação de um estigma. Trata-se da mistura como elemento de diferenciação dos caboclos que é compreendida como uma forma de garantir a manutenção das gerações sem que os caboclos estejam condenados ao desaparecimento, destino que estaria reservado às gerações dos negros locais misturados.

Para moradores do povoado de Campinhos, os negros são identificados como “uma raça de gente já inexistente [culturalmente] hoje”, pois a mistura produziu gerações mestiças e não mais negras. Assim não existem enquanto pessoas racial ou etnicamente diferenciadas. Os caboclos, ao contrário, sobreviveram aos casamentos interétnicos e existem até hoje enquanto “pessoas diferentes”. O que permitiu tal sobrevivência ao tempo e aos processos de mistura não foram, aos olhos de moradores não-índios de Campinhos, suas práticas culturais distintas, mas o fato de “caboclo” já ser um produto híbrido e portanto estar imune aos casamentos interétnicos; é a mistura que “imuniza” as gerações seguintes contra a sequência de miscigenação, permitindo a reprodução de caboclos através de casamentos interétnicos.

Não é por acaso, portanto, que se admite a “caboclização” dos Pantas, tanto pela via dos casamentos interétnicos, como mediante o empréstimo parcial de suas referências de identidade (a terra Cazumba) que servem como matéria para a construção embrionária de uma territorialidade karuazu.

Se para os não-índios a questão dos caboclos remete ao tema de raça, para os Karuazu trata-se de tematizar cultura e identidade, o que sugere a continuação da alteridade principalmente por meio da manutenção de suas práticas sociais. Isso pode ser deduzido da fala do cacique Edvaldo de Araújo quando diz, referindo-se às distâncias entre as gerações de outrora e a atual, que “aqueles que não procuram os rituais e os costumes estão separados ainda”.

A inclusão dos Pantas pelos caboclos que chegaram de Brejo dos Padres não foi produto apenas dos recorrentes intercâmbios matrimoniais entre ambos, mas também facultada por relações econômicas. Isto porque algumas famílias caboclas se empregavam em terras de terceiros por intermédio dos Pantas ou diretamente nas terras desses. Contudo, as freqüentes trocas interétnicas entre negros locais e índios vindos de fora e a consolidação de uma nova identidade resultante desse encontro não impediu uma tensão entre os Karuazu relativa às suas diferenças internas, notadamente no que se refere às práticas rituais polarizadas em “trabalho de índio” e “trabalho de xangô”, isto é, de negro.

As relações com os Pantas ofereciam às famílias caboclas uma oportunidade de se reorganizar enquanto um conjunto social, fragmentado pelos sucessivos movimentos migratórios dos Pankararu ocorridos após a extinção oficial do aldeamento de Brejo dos Padres, em 1875, que trouxe o loteamento das terras dos índios entre posseiros, ex-escravos e algumas famílias indígenas que permaneceram no local. Foi a partir deste contexto, associado às dificuldades climáticas, que se deram as diásporas pankararu. Estas produziram, um século depois, as identidades ligadas a essa matriz sociocosmológica: os Kalankó, Geripankó, Katokinn, Pankarú, Pankararé, Kantaruré, Koiupanká e Karuazu. Se os intercâmbios matrimoniais entre negros e índios sofreram significativo impulso em Brejo dos Padres por conta dos contextos sociais de interação criados após sua extinção, o modelo de casamento interétnico parece ter sido transportado junto com as diásporas pankararu que conduziram famílias de Brejo dos Padres até os povoados de Campinhos e Tanque. Sobretudo no primeiro, onde a presença dos Pantas era mais sólida e antiga.

A facilidade que Pantaleão de Araújo Andrade encontrou para acumular terrenos onde posteriormente seria erguido o povoado de Campinhos lhe rendeu o status de importante proprietário de terras. Esta qualidade significativa poderia proporcionar às famílias que vinham de Brejo dos Padres e mantinham trocas matrimoniais com os Pantas uma inserção favorável no sistema fundiário local, permitindo-lhes, inclusive, passar de trabalhadoras em terras alheias a proprietárias rurais. A partir do relativo sucesso na acumulação fundiária, o prestígio de Pantaleão de Araújo lhe deu acesso ao círculo de relações de pessoas importantes e poderosas na região de Água Branca, como os abastados Torres e membros das famílias dos Alves e Casemiro, uma prova de que sua ascensão social como proprietário rural amenizava os estigmas que lhe caberiam em função da classificação racial. Com terras e reconhecimento, o “Velho Panta” se colocava socialmente em pé de igualdade em relação aos principais e mais ricos moradores de Campinhos.

As primeiras famílias oriundas de Brejo dos Padres chegaram aos povoados de Campinhos e Tanque na segunda metade do século XIX e já encontraram, além dos Pantas, outras famílias cujas posses fundiárias foram adquiridas por petição ou ocupação de terrenos devolutos. Diferentemente do que ocorreu com as primeiras famílias originárias de Brejo dos Padres que chegaram às vizinhanças de Água Branca – as que hoje formam o conjunto dos ancestrais dos Kalankó – e encontraram facilidades de acesso à terra, os caboclos que alcançaram as terras de Pariconha provavelmente só conseguiram tal feito mediante os casamentos interétnicos com proprietários locais, notadamente os Pantas, ou com o arrendamento de pequenas glebas de terra que eram cultivadas em sistema “de meia” praticado extensivamente na região. Essa dificuldade histórica de se firmarem como proprietários rurais, tanto em Campinhos quanto no Tanque, produziu para as gerações seguintes uma estrutura fundiária apertada, com escassez crítica de terras e fragmentação dos lotes adquiridos por herança.

As justificativas encontradas para tal cenário não se remetem a processos de expropriação ou grilagem que teriam provocado a escassez de terras entre as famílias karuazu, mas ao fato dessas famílias, em sua maioria, terem ingressado no sistema fundiário local mediante a prática do plantio “de meia”, com reduzidas perspectivas de virarem donas das terras que cultivavam. Contudo, foi o violento processo de esbulho de terras experimentado pelos ancestrais das atuais famílias karuazu que promoveu sua saída de Brejo dos Padres após a declaração de extinção desse aldeamento por autoridades pernambucanas. Com este processo de diáspora, levas de migrantes começaram a chegar à fronteira oeste de Alagoas, próximo à divisa com Pernambuco, fenômeno que depois veio a favorecer o processo social de surgimento de novas identidades indígenas ligadas à matriz sociocosmológica pankararu. Se esses novos arranjos coletivos são frutos de políticas indigenistas imperiais de territorialização, sua afirmação enquanto “ramas” do “tronco”, representado pelo aldeamento matriz de Brejo dos Padres, indica um notável processo de transterritorialização compreendido pela expansão contínua das fronteiras do território social pankararu.

A saída de famílias indígenas de Brejo dos Padres após 1875 e a chegada aos povoados de Campinhos e Tanque são um marco na história de formação da identidade karuazu, mas essa viria se tornar uma realidade efetiva – quase cem anos depois – após a participação dos atuais Karuazu nos circuitos regional e nacional de apoio indigenista, encabeçados por agentes como Cimi e Apoinme (Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo). É importante, portanto, considerar o papel de agentes de apoio e de lideranças indígenas regionais, dentre elas respeitadas e influentes lideranças pankararu e geripankó, no processo de formação da identidade karuazu, posto que é nesse diálogo que é tecida e emerge uma história coletiva capaz de agrupar e mobilizar, a despeito das diferenças e interesses conflitantes, famílias com ancestralidade indígena nos povoados de Tanque e Campinhos.

As relações entre os “brancos” que habitavam tais povoados e os caboclos vindos de Brejo dos Padres eram sustentadas pela necessidade de mão-de-obra para tocar o cultivo da terra. A atividade produtiva gerada com a mão-de-obra dos caboclos provavelmente incrementou o crescimento do povoado de Campinhos e expandiu as tímidas roças para as áreas ocupadas pelos pastos que serviam ao criatório de bois, cabras e ovelhas.

Este cenário assemelha-se ao que ocorreu nas bordas das serras de Água Branca, notadamente nos atuais sítios kalankó Januária e Gangorra, pois tanto lá quanto em todo o entorno da cidade de Pariconha as áreas eram particularmente de desenvolvimento pecuário, tornadas áreas de cultivo extensivo com a chegada dos caboclos que se empregavam como diaristas ou capatazes nas fazendas. Isto reforça a suspeita de que havia uma séria escassez de mão-de-obra em toda esta região da fronteira oeste do estado de Alagoas entre o último quartel do século XIX e as duas primeiras décadas do século seguinte, forçando a incorporação dos caboclos ao sistema produtivo sem, entretanto, proporcionar-lhes integração social plena ou tolerância cultural. Sua assimilação ao sistema econômico regional como força produtiva transformava-os em simples trabalhadores rurais e ajudava a erodir as diferenças culturais, não obstante a incessante reconstrução das fronteiras simbólicas entre “brancos” e caboclos.

A assimilação dos caboclos mediante as trocas matrimoniais com os Pantas ou pela incorporação como mão-de-obra ao sistema regional produtivo, não comportou, como contrapartida deste novo campo intersocial, a fabricação de estigmas violentos por parte dos “brancos”. O que não quer dizer, entretanto, que os referenciais aplicados aos caboclos fossem desprovidos de valores, já que eles traziam uma grande carga valorativa que acentuava as distâncias simbólicas e sociais, ora naturalizando a miséria e a pobreza dessas pessoas, ora manifestando oposição às suas práticas rituais relacionadas ao toré e ao culto aos Encantado.

Organização social e política

Há dois núcleos políticos principais entre os Karuazu que, mais ou menos, coincidem com sua distribuição populacional, e que se caracterizam também como grupos rituais autônomos. Os povoados de Campinhos e Tanque aglutinam as famílias que prestam lealdades a um desses núcleos que, entretanto, não se formaram exclusivamente tendo o parentesco como critério, posto que os Karuazu são, de algum modo, todos parentes entre si. Os assuntos comunitários são conduzidos de forma a preservar a autonomia dos núcleos, reforçando a rivalidade existente entre eles que, ordinariamente, se exprime de forma bastante contundente, sendo amenizada apenas nas ocasiões em que a cooperação é imprescindível para o sucesso de metas almejadas por toda a coletividade.

Em cada um dos núcleos há um cacique, pajé e pessoas influentes nos assuntos coletivos; contudo, a FUNAI vinha reconhecendo apenas a legitimidade de uma única liderança como cacique representante de ambos os núcleos, acirrando ainda mais as disputas e animosidades internas.

Ritual e cosmologia

Praiás Karuazu durante ritual, aldeia Campinhos, Pariconha, sertão de Alagoas. Foto: Ugo Maia Andrade, 2002
Praiás Karuazu durante ritual, aldeia Campinhos, Pariconha, sertão de Alagoas. Foto: Ugo Maia Andrade, 2002

Ao lado das formas sociais de organização que incluem os casamentos interétnicos com os Pantas e da larga participação histórica dos caboclos oriundos de Brejo dos Padres na economia local, os desempenhos rituais dirigidos aos Encantado e aos Praiá surgem como fator central de identidade e de identificação. Encantado são entes regulares nas cosmologias indígenas e afro-indígenas do norte e do nordeste brasileiros, atuando, principalmente, nos processos cura-doença. Caracterizam-se pelo fato de serem pessoas que passaram de forma volitiva por um processo de “encantamento”, superando, assim, o ato da morte. Tal transformação possibilita que os Encantado diferenciem-se dos espectros dos mortos e assumam formas exteriores múltiplas, devendo ser caracterizados como pessoas que podem ser vistas apenas pelos pajés e mestres rituais, auxiliando-os de forma decisiva em suas atividades. Praiá é um tipo de Encantado que dança no terreiro usando vestes especiais portadas por um "moço" que é, simultaneamente, seu pupilo e corpo físico durante as apresentações no terreiro de toré. Os Praiá são chamados de Mestre e denominados por mediante referências simbólicas diversas, como Vaqueirinho, Serra do Fogo e Senhor dos Passos.

O complexo ritual dos Karuazu é marcado por atividades relativas à comunicação com os Praiá, herança direta dos Pankararu. Enquanto uma “ponta de rama” desse grupo, os Karuazu não possuem habilitação para realizar as festas do ciclo ritual pankararu, como o Menino no Rancho ou a Flechada do Umbu, e todos os Praiá levantados pelos Karuazu a princípio devem ter autorização expressa de Brejo dos Padres antes de dançarem no terreiro pela primeira vez. A personagem a quem se atribui o início de atividades rituais autônomas, mas paralelas às desempenhadas pelos Pankararu, é Vicente Manoel dos Santos, vulgo “Finado Dão”, curador que viveu no povoado do Tanque. Filho do lendário índio atikum Manoel Cabeça Vermelha que, junto com outros, migrou para o aldeamento de Brejo dos Padres em meados do século XIX, “Finado Dão” realizava memoráveis sessões de “mesa de cura” onde eram feitas consultas aos Encantado visando a cura de enfermidades de vários tipos e origens. Uma mesa consiste em um desempenho ritual voltado para processos cura-doença que diagnosticam as causas de males e fazem prescrições na forma de defumações, rezas e banhos com ervas. Além disso, as mesas são espaços para consultas aos Encantado sobre temas diversos, particulares ou de interesse coletivo.

Praiás Karuazu durante ritual, comunidade Tanque, Pariconha, sertão de Alagoas. Foto: Ugo Maia Andrade, 2002
Praiás Karuazu durante ritual, comunidade Tanque, Pariconha, sertão de Alagoas. Foto: Ugo Maia Andrade, 2002

As experiências com os Encantado podem ser um sinal positivo e confirmar a excepcionalidade de uma pessoa que os terá como protetores e guias. Entretanto, nem sempre esta companhia é bem aceita, já que os Encantado exigem reciprocidades de seus consorciados e, quando consideram-se não atendidos, podem provocar-lhes doenças ou infortúnios. Uma vez detectada a competência de uma pessoa no contato com os Encantado, é imprescindível a adoção sistemática de medidas purgativas, tais como abstinência alcoólica e sexual durante períodos rituais (sobretudo para os “moços” de Praiá) e uso regular de banhos e defumações. Os descumprimentos desses preceitos podem acarretar perda temporária de sanidade, mal estar físico e fadigas ou algum tipo de comportamento anômalo ou irregular, passando os sintomas até que a pessoa restabeleça as prescrições que lhe compete.

Presença no movimento indígena

Fato determinante para a etnogênese e história karuazu é o apoio que o grupo recebeu e vem recebendo de importantes lideranças indígenas regionais. Assim, no documento entregue à AER Funai-Maceió em 1999, solicitando providências para a realização dos estudos antropológicos de identificação étnica, constam assinaturas de lideranças dos Geripankó, Pankararu, Kariri-Xocó, Tingui-Botó e Xucuru-Kariri. É a partir dessa forma específica de contribuição que os Karuazu passaram a fazer parte efetiva e atuante do circuito político dos movimentos indígenas regional e nacional, ressaltando-se o papel do Cimi nesse processo de visibilidade. Tal papel não se limitou a fornecer ao grupo acesso aos fóruns indígenas: a divulgação no periódico Porantim, editado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e de circulação nacional, de episódios relativos à mobilização dos Karuazu foi crucial para dar ampla visibilidade ao grupo, auxiliando na legitimação de seu movimento por identidade.

Uma dessas matérias consta na capa da edição do n. 214 desse periódico e apresenta uma grande foto de Praiá dispostos em fila indiana em um terreiro acompanhada da chamada: “Karuazu. O ressurgimento de um povo”. A matéria do Jornal Porantim explora termos de maciça penetração no imaginário geral sobre índios, particularmente aqueles capazes de denotar ações de resistência e reprodução cultural que corroboram o fato dos Karuazu serem, como é anunciado, um grupo indígena “ressurgente”, termo cunhado e disseminado por agentes do próprio Cimi e largamente aplicado aos novos coletivos de identidade indígena do nordeste brasileiro.

Contudo, o parentesco é o motor principal de solidariedade e articulação entre os povos indígenas, possibilitando não somente a etnogênese dos Karuazu, mas igualmente dos Kalankó, Koiupanká e Katokinn. Estes recorrem às relações de parentesco entre os grupos – confirmadas largamente pelas genealogias das principais famílias – a fim de justificar a obrigação de reciprocidades políticas e rituais, ressaltando o apoio mútuo nos assuntos comunitários mais sensíveis, notadamente aqueles que envolvem diálogos tensos com o Estado. Assim, o fator de solidariedade política que, dentre outras ações, facultou a articulação indígena que ocupou a sede regional da Funai-Maceió em abril de 2002, deve ser buscado no parentesco e nas experiências históricas comuns desses grupos representadas pelas levas migratórias provenientes do aldeamento de Brejo dos Padres. Isso demonstra que o campo político da etnogênese karuazu, e dos outros grupos citados, está embasado em redes indígenas cujo elemento principal é o parentesco.  

Fontes de informação

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  • ANDRADE, Ugo Maia. 2003b. Relatório antropológico de identificação étnica do grupo Kalancó (AL). Contrato de consultoria n. 22/2002/FUNAI. São Paulo, 180 pp.
  • ANÔNIMO. “Informação geral da capitania de Pernambuco”. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, vol. XXVIII, p. 117-496, 1906(1749).
  • ARAÚJO, Betania Maciel de. Estudo Comunicacional do Ritual o "Menino do Rancho" dos índios Pankararú. Dissertação de Mestrado em Comunicação Rural. Recife: Universidade Federal Rural de Pernambuco, 1994.
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  • DANTAS, Beatriz G.; SAMPAIO, José Augusto L.; CERVALHO, Maria Rosário G. de. Os povos indígenas no Nordeste Brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos povos indígenas no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; Fapesp, 1992. p. 431-56.
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